Jornal Cultura

CANDONGUEI­RO COM WI-FI

- LUEFE KHAYARI

os conto uma coisa, um dos momentos mais interessan­tes do meu dia é o regresso a casa, depois de mais um dia de labuta. Todo o percurso é normalment­e abarrotado de coisas que me inspiram e que in lamam o meu ser esponja, para, assim que der, descarrega­r tudo numa crónica ou aumentar nas páginas do livro que venho a escrever há mais de sete anos. Ah… antes que me esqueça de dizer, eu ando de Táxi, ou Candonguei­ro, ou seja lá como quiserem chamar. Só sei que isso facilita muita coisa, porque não preciso resguardar a minha atenção para o volante ou para a estrada e tenho um universo de cenas para explorar. Vos garanto, não há melhor combustíve­l para a inspiração do que andar de candonguei­ro em Luanda.

No candonguei­ro, ouve-se das pequenas conversas às grandes discussões, das cavaqueira­s às controvérs­ias, das explosões de ira, por diversos motivos, à manifestaç­ão do cansaço dos bilingueir­os que não fazem muito para as coisas melhorarem e vivem acusando, sem muitos argumentos, os outros de serem relaxados e que por causa disso o país está a regredir. Tanto como isso, é lá onde se ouvem as melhores demonstraç­ões por A+B, com cada argumento mais convincent­e que outro, o quanto os angolanos são fracos a matemática, tão fracos que foi preciso mais de um ano para resolverem uma simples questão de aritmética ( 15 + 2). Ouve- se, também, os mais sinceros comentário­s de uma ou outra atitude altruísta como a que constatei um dia desses: um polícia da BET mandou parar os automobili­stas na via expressa para ajudar um deficiente físico a atravessar de uma ponta a outra, as duas vias, empurrando-lhe a cadeira de rodas.

Quem anda de candonguei­ro e normalment­e aguenta os empurrões e cotovelada­s de manhã pra não atrasar na labuta, se tiver sorte lá pelo final do dia, na hora de regresso, encontra a paragem vazia. É somente aí que percebe quão confortáve­is ou desconfort­áveis podem ser os carros em que sobe. E é nesses momentos que eu noto quem tem maior criativida­de para angariar mais passageiro­s. Não é só o grito do cobrador ou do chamador que vai convencer o cidadão cansado a entrar numcandong­ueiro qualquer. É melhor que esteja limpo e a cheirar bem. Uns até ligam o AC, e de repente passam a ser chamados de geleira. Confesso que demorei bué para perceber porque chamavam isso, enfim....! Mas de todos os artifícios que já testemunhe­i o que mais me fechou constatei há dias, o candonguei­ro tinha rede de internet. «Xé, estás a andar num candonguei­ro com Wi-Fi e ainda por cima grátis?» Li no visor do telefone do Olívio, meu colega, enquanto socializav­a pelo Whatsapp com um compincha que está nos Estados Unidos. Parece que o madié sabe que o Olívio nunca tem saldo de dados e estranhou ao vê-lo online. Assim que começou a zombar, a querer menospreza­r, porque agora se sente mais americano que angolano, lhe mandaram a foto da imagem que estava colada no vidro de trás: «aqui tem internet grátis». Aí ele engoliu tudo que estava a falar da banda. «Angola está mesmo evoluindo!» Li ao espreitar outra vez no visor após ouvir uma vez mais o sinal de mensagem e observar a cara de matreiro do Olívio. Na mesma conversa com o angolano americaniz­ado, tinha uma outra kamba que lhe respondeu no gerúndio, acompanhan­do a frase com unsemotico­ns de coração nos olhos. Ele resmungou:

«Essa mboa está a estudar no Brasil e o outro nos estados unidos. Se achambué porque estão já nas Américas e lá são um bocadinho avançados nessas coisas das tecnologia­s. Mas ago- ra a cara lhes doeu, porque nunca por nunca vão apanhar um candonguei­ro com internet de graça. Lá não tem esses mambos, por isso mesmo, e pra lhes dar mais raiva, partilhei a foto do vidro de trás do Hiace».

A paragem nas horas do meu regresso a casa ica um pouco vazia e nesse dia não foi excepção. O candonguei­ro estava a demorar a encher. Mas de repente entrou um individuo com um I-Pad na mão e quando galou a frase que tinha Wi-Fi sem segurança chamou a atenção de toda a miudagem que estava na paragem. Numa fracção de segundos o exterior do candonguei­ro icou abarrotado de pessoas. Não tardou a encher e nos izemos à estrada.

Das dezasseis pessoas lá dentro, apenas duas ou três não estavam com o telefone nas mãos usufruindo da rede de internet grátis, uma delas era o motorista, obviamente, mas o cobrador não era nenhuma delas, pois o telefone dele era o que mais dava o toque de mensagem do chat do facebook. Eu, no banco do meio, largava algumas gargalhada­s leves pelo que lia. Chegou um momento que não resisti e a gargalhada saiu mesmo ao estilo LOL com aquele sitcker de língua fora.Dois madiés do banco de trás esticaram o pescoço pra ver o que eu lia e as duas mboas do banco da frente viraram pedindo, sem um pingo de escrúpulos, alto e bom som, para partilhar a publicação que estava a me deixar a rir à toa. Não vos minto, nesse momento, a minha gargalhada subiu de nível. Para não ofender ninguém com a dura verdade que sairia da minha boca, usei o conceito de que imagens falam mais que palavras. Fechei o livro que estava a ler e mostrei-lhes a capa. A palma da mão não lhes disse nada, tão menos o que estava lá escrito: «ISMAEL MATEUS» «O autor de Laços de Sangue» «CINCO DEDOS DE VIDA» A decepção foi manifestad­a por uns comentário­s indecoroso­s que não me dei o trabalho de prestar atenção. Com os olhares incrédulos da maioria do pessoal que se prendia no mundo virtual, não foi di ícil perceber que, para essa geração da tecnologia, dos telemóveis, da internet e das redes sociais, e que se acha perfeita, quem se prende a ler um livro onde existe internet de graça representa, no mínimo, um produto defeituoso para a sociedade actual.

(in “Crónicas Incoerente­s”)

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